quinta-feira, 25 de julho de 2013

AN ABSURD POINT OF VIEW: breve consideração sobre a patafísica no cinema.


"O cinema não tem fronteiras, nem limites. É um fluxo constante de sonho." - Olson Welles.


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Alguns entusiastas do cinema estão sempre fazendo odes aos clássicos, e até munem certa raiva por  quem não dá a mínima, ou pelo menos não entende a linguagem sútil, embora às vezes coercitiva, do cinema. Dizer que nunca assistiu Casa Blanca (1942), Jules e Jim (1962), Ladrão de Bicicletas (1968), a inspiradora atuação de Chaplin em Tempos Modernos (1936), ou os geniais filmes do Hitchcock, é quase um pecado mortal.

Óbvio que os exemplos de filmes que dei são importantíssimos e tiveram uma contribuição para a história do cinema aqui e alhures. Mas, será que a genialidade habita apenas os clássicos? 

Por certo, à época da produção desses filmes, a sociedade ainda era influenciada direta, ou indiretamente por fatos como a Primeira Guerra Mundial da primeira década do século XX, na qual se viu o poderio da alta tecnologia armamentista e que historicamente demonstrava as garras crescentes do imperialismo europeu. O pano de fundo da Revolução Russa também rendeu muito ao cinema, porém a Primeira e a Segunda Guerra – principalmente a questão do Holocausto - significaram um reordenamento político, econômico e geográfico do mundo. 

Acontecimentos como esses até hoje são vendáveis para o cinema. Se você acha que não, assista In Glorious Basterds (2009) do Quentin Tarantino, ou o profundo e inesquecível A Vida é Bela (1997) de Roberto Benigni. Filmes recentes, e que de uma maneira distinta retratam as mazelas do Terceiro Reich.

Ainda assim, o cinema parece viver hoje um clima nostálgico, principalmente o norte-americano. Filmes sobre Abraham Lincoln, a corrida para o Oeste e o ambiente pós-guerra – conteúdo comum dos Spaghetti Western da década de 60 - estão em alta recentemente, talvez porque, hoje, historicamente nenhuma grande guerra como àquelas sirvam de inspiração para as produções. 

É exatamente na escassez desse tipo de criatividade - reproduzir o fato, utilizar o lugar-comum histórico, brincar com o empirismo e mascará-lo com tons teatrais - que se fez necessário, em momentos distintos, no cinema, apelar para a ficção.

Agora, com licença, vamos ao que interessa?

Lembremos, pois do primeiro filme do cinema a utilizar efeitos especiais Voyage Dans la lune (1902), inspirado nos livros Da Terra à Lua de Júlio Verne e E os Primeiros Homens na Lua de H.G Wells. O filme foi curiosamente pensado por um ex-mágico ilusionista Georges Méliès e o mérito da produção não é apenas por seus pioneiros efeitos, mas em seu sentido atemporal, pois reflete naquele momento a insatisfação do homem com as experiências vividas na Terra. Era preciso alçar novos vôos: ir a Lua. Se a ida à Lua na década de 70 foi, ou não verdadeira, isso não nos interessa agora, o fato é que bem antes de tais acontecimentos, palpitava um desejo no coração dos homens de extrapolar sua trajetória histórica, não por qualquer descontentamento, ou pessimismo tão latente com a sociedade, mas pela necessidade do desnecessário, ou seja pelo uso de uma lógica que transcendesse seu enquadramento histórico. Geoges explora isso de forma mágica e irônica, abusando dos sentidos e dos valores cristalizados a respeito das coisas. A Lua, por exemplo, tem o rosto de um ser-humano, sangra ao ser atingida pelo foguete e não é um planeta abiótico, mas  habitado por alienígenas repugnantes e hostis.

A menção ao filme de Georges Mérliès é justamente para utilizar a linguagem do cinema como um objeto propício de análise patafísica. É a partir dos elementos fictícios enfatizados pela imagem reproduzida nesta produção, que podemos vislumbrar a superação prática da metafísica, enquanto ontologia do ser geral e material. O primeiro filme feito em 1895 pelos Lumiere tratava-se de um elemento comum, o símbolo da entediante repetição do cotidiano industrializado: um trem. Ora, os Lumiere nada mais fizeram que reproduzir o que historicamente lhes era conveniente, eram industriais. O interessante é que o cinema neste momento mostra um fato comum, geral. Diferente de Mérliès. A chegada na Lua significa mais do que a primeira adição de efeitos especiais. e a evolução técnica e científica em andamento, pois os tripulantes voltam à primeira frustração, são atacados pelos selenitas, os alienígenas. Trata-se de uma discussão da própria existência humana através da ficção.

 A ficção eleva a níveis absurdos as discussões sobre o ser, a tal ponto de beirar com tal resignificação a sátira e a comédia, por consequência. O que no século XX chamou-se de Patafísica, ou "ciência das soluções imaginárias", inevitavelmente paira sobre esse tipo de interpretação.  Foi outrora originada pelo dramaturgo francês Alfred Jerry em obras como Rei Ubu (1896), uma de suas mais famosas peças teatrais, e que potencializa as questões excêntricas e surreais que regem a vida abordando também, discussões como o abuso do poder e da autoridade da burguesia francesa, recorrendo para tanto, aos aspectos mais grotescos da existência humana, expondo Ubu - personagem principal - como um herói totalmente controverso estetica e moralmente: gordo, vulgar, feio, desonesto, covarde e cruel.

 A patafísica, neste caso em seu lato senso, vai além de utilizar das excessões como elemento estético e artístico. Há certa operacionalização crítica desta nova forma de concepção e observação do mundo, uma vez que tal ciência considera insuficientes as conclusões genéricas das quais a metafísica partilha. Sintetizando, há um sentido organizado nos fenômenos excêntricos - singulares - a ponto de significarem outra dimensão física, idealizada e para além dos postulados metafísicos, que consideram o real como repetição da relação geral entre o ideal e o material, não negando, porém sua importância, e sim, oferecendo a possibilidade lógica de entender que tipo de deformações se estabelecem entre estes fatores. É claramente o vislumbre da crise da ciência moderna, em que os fenômenos apenas eram explicados de forma exata e metafísica. Os números seriam a linguagem que expulsaria a capacidade de negação de determinado ponto de vista e, em vez disso, se construiria um conhecimento não pleno, ao contrário. Em contrapartida, os cientistas preferiram sua exatidão, marginalizando todos os fenômenos que o cálculo não sabia explicar. Os epifenômenos.

 A ficção e a comédia são uma espécie de epifenômeno e nasceram dessa motivação. A necessidade de chocar o público, de caricaturar o real, e ao mesmo tempo de criticar determinadas posturas, apelando para o absurdo,  ridículo, e impactante mundo excessivo que acaba nos presenteando com a possibilidade de recriar a lógica oriunda da repetição de comportamentos.

As diferenças e semelhanças existentes entre o filme de comédia e ficção Click (2006) e O Fausto (1808) servem como objeto destes fenômenos.

Primeiro, porque o ator principal é nada mais, nada menos que Adam Sandler, e considerando a data da produção, tudo que se espera é um filme cômico, que exagera em ridicularizar seus personagens: técnica infalível para fazer rir. 

Segundo – e isso tem a ver com o telespectador – porque criamos sempre expectativas em relação a um comediante, expectativas baseadas em lógicas repetidas, dentro de um determinado contexto, por sinal. Praticamente não conseguimos visualizar e identificar as qualidades cênicas, profissionais e competentes em uma atuação cômica. Ora, fazer rir é um dos segredos mais tenebrosos e singulares que existem! Ninguém consegue contar a mesma piada duas vezes e obter o mesmo resultado. Não mesmo. Ainda mais, se a piada não for sua. É algo circunstancial. Imagine, por exemplo, gravar algo que se torna engraçado durante décadas. Deve haver algo de genial aí, não acha? Pois bem, o filme Click consegue ser genial, unindo as duas faces da moeda: A comédia e o drama, em doses certas. 

Quantas vezes, você leitor, não desejou  simplesmente apagar, deletar, jogar no lixo certos momentos de sua vida? Quantas vezes não pensou como em um passe de mágica evitar certas situações, ou até mesmo repetir a dose de oportunidades únicas? Parece formidável, mas como tudo nessa vida tem um preço, às vezes esse preço pode ser alto demais, como diria um "beatle, beatnik e bitolado" cantor brasileiro. E é exatamente sobre esse preço que quero vos falar.

       Para inicio de conversa, farei um spoiler do filme - minhas sinceras desculpas para quem ainda não assistiu: Trata-se de um homem (Michael Newman) insatisfeito com sua vida corrida, quase sempre se atrasando para seus compromissos familiares. Decorre que, um dia enraivecido com a falta de eficácia com seus aparelhos eletrônicos, resolve comprar um controle universal para facilitar sua vida. É aí que, encontra um vendedor chamado Morty que lhe oferece um controle de tecnologia muito avançada. Ao testar o controle, ele percebe que pode avançar ou voltar no tempo, podendo modificar seu destino quantas vezes quiser. A partir daí, o filme mostra uma série de cenas engraçadas, mas isso não é tudo. 

O controle simplesmente avança automaticamente no tempo, desviando de todos os momentos ruins que o protagonista havia desejado não passar. Até que percebe estar perdendo sua vida em vez de ganhando: é promovido na empresa, porém se vê em más condições de saúde, obeso e envelhecido, até chegar ao ponto de perder seu pai. Uma das cenas mais impactantes do filme é vê-lo tentar voltar ao instante que viu seu pai pela última vez, e aos prantos o ouvindo dizer “eu te amo”, mas desconsolado porque naquele exato momento do passado, ele não deu a mínima. Tudo por causa de sua ambição e concentração exacerbadas no trabalho.

Aqui, pode-se pensar na discussão sobre a realidade e  verdade.  Do ponto de vista psicológico, a experiência lapida a racionalidade - há excessões, claro - daí o porquê do que é real para nós participar do concreto, de informações cristalizadas. Com base nestas informações, edificamos nossos pré-conceitos e chamamo-os de valores: eis a nossa verdade. Tudo aquilo que não participa do mundo concebido através do empirismo, então, chamamos de sonho, possibilidade, ou de forma pejorativa, quimera, utopia, fatores irracionais. 

A relação próxima, quase íntima com a morte personificada em Morty, desperta a ideia de que é a morte, assim como nos contos kafkianos, a principal reorganizadora dos sentidos: das coisas, dos seres, de forma particular - como Heidegger expôs - mas também de forma abstrata, geral, e social.

A escolha de selecionar o momento que queria viver, para Michael, significava o escape que se tem na busca do eterno prazer, sim. Mas, também significou uma confusão nos sentidos de verdade e realidade. Ao passo que Michael avança, se torna mais frágil. Isso porque a experiência fora suprimida de sua realidade: não havia mais processo, apenas o fim. Suas verdades estavam todas estraçalhadas e não possuía estrutura o suficiente para suportar todos os desastres em sua realidade paralela. A morte do Pai foi uma delas.

O emocionante diálogo entre o Michael do passado possível e seu pai é precedido por um momento em que Michael está diante de sua lápide e se vê na impossibilidade de voltar até o momento em que seu pai morreu, segundo Morty seria devido a sua ausência naquele dado instante. Michael escolhe ver o último momento em que o viu. Prefiro não reproduzí-lo aqui, a carga emocional é mais plena ao assistir o filme. É uma dica. 

No entanto, não dá para deixar de pensar na maior obra literária alemã já escrita sobre o folclórico Doutor Fausto. A versão de O Fausto de Goethe representa em doses poéticas a história tenebrosa do Doutor que vende a alma ao demônio Mefistófeles em troca de fortuna, que não fora conseguida pelo avanço científico e sua busca pelo conhecimento.

Fausto é a representação da modernidade que avançava sem escrúpulos, e que se fosse preciso passaria por cima de tudo e todos para permitir a evolução do capital e da técnica. Há um interessante diálogo entre o roteiro de Click, e o poema. Aí vai um fragmento de Fausto, no qual o demônio tenta persuadi-lo a vender a alma:

Fausto: Que me hás de dar tu, pobre diabo?
A mente humana e seu imenso anelo
Acaso compreender podem teus pares?
Manjares tens que não saciam, ouro,
Que nos corre das mãos, qual vivo azougue,
Jogo a que se ganha? Tens mulheres
Que sobre o peito meu, com meigos olhos,
A outrem se prometem? Tens da glória
O divino prazer vão meteoro
Que rápido se esvai? Mostra-me frutos
Que antes de colhidos corrompam
Plantas que nova folha vistam!

Mefistófeles: Não me aterra a incumbência, posso dar-te
Também desses tesouros. Mas, amigo
O tempo ao fim lá chega em que somente
Algum prazer gozar em paz queremos.

Fausto: Se jamais repousar sossegado
Em leito de indolência, morra logo!
Se, com lisonjas tanto me iludires
Que chegue a estar comigo satisfeito
Se com deleites logras seduzir-me,
Seja o meu dia derradeiro!
A aposta ofereço!

Convencido de que Fausto trocaria sua alma por riquezas e sucesso, o diabo requisita um horário adequado, pontual e a assinatura de seu cliente, pois Mefistófeles é a representação do nascimento do Estado moderno e burocrático, que já não possui em si elementos mágicos – a honra, a confiança e o poder dado à palavra antes comum na Idade Média – mas, sim a fé na escrita, nos documentos assinados, prova do acordo entre o concessor e o contemplado. E claro, o “carimbo” para selar formalmente o negócio. A metáfora do sangue e do licor demonstra a força do discurso materialista que prossegue no trecho:

Mefistófeles: Topo!


                [...]

Hoje mesmo ao jantar
Do Doutor farei serviço –
Há morrer e viver, porém, e peço,
Umas duas regrinhas assinadas.

Fausto: Escritura também queres, pedante?
A fé de homem honrado não conheces?
Não é bastante que a palavra dada
Para sempre me ligue em toda a vida?
Enquanto o mundo arrastam mil torrentes
Terão promessas de prender-me?!
Mas é esta a ilusão que temos n’alma:
Quem ousará jamais soltar-se dela?
Ditoso o que no peito traz verdade;
Não lhe hão de pesar os sacrifícios!
Pergaminho, porém selado e escrito,
É fantasma que aterra os mais afoitos.
Já na pena a palavra morre, a cera
E o couro curtido então dominam. –
O que exige de mim, maligno espírito?
Papel ou pergaminho? Bronze ou mármore?
Que escreva com cinzel, buril, ou pena?
Deixo-te livre a escolha.

Mefistófeles: Por que hás
A tal ponto empalar tua facúndia?
Qualquer papel nos serve, se assinares.
Com um pingo de sangue...

Fausto: No capricho
Consinto, se com ele te contentas.

Mefistófeles: É o sangue um licor especialíssimo. 

                                                                [...]

 Michael Newman dentro desse diálogo seria uma espécie de “Fausto inconsciente”, pois desconhece os planos diabólicos de Morty, que é o próprio Anjo da Morte, e que se enquadra na figura de Mefistófeles. O ser maligno tanto em um, quanto no outro, está sempre negociando com eloquência, persuadindo sua vítima em troca de algo.

A lição de moral é uma constante nos filmes nos quais Adam Sandler atua. Click não é diferente. Aprender o valor das pessoas, tomar cuidado com o livre-arbítrio... São alguns temas que se seguem. Michael teve outra chance ainda em vida de se reestabelecer e mudar seus hábitos. O fim de Fausto não é tão diferente, por haver perdido apenas uma parte da aposta com o diabo, o Doutor inconsequente tem a sua alma levada para o Paraíso por anjos. Mas, como fizera um pacto, nunca mais tornaria a vida. Daí se segue um embate entre Mefistófeles que reclama contra os céus a alma de Fausto:


Mefistófeles: (caindo em si).
Que é isto?! - Eu feito Jó, chagas e chaga,
Homem que, de si próprio horror sentindo,
Triunfa ao mesmo tempo, quando se olha
Todo e em sua raça e em se confia:
Salvas estão do demo as partes nobres,
O feitiço de amor sai todo à pele!
Eis as chamas nefandas consumidas;
Posso, como é dever, maldizer todos!

Coro dos Anjos:
Quem de vós tocado,
Santo fogo ardente,
Aos santos ligado
Ditoso se sente,
Cantemos em coro
Da vitória a palma!
O ar está puro:
Respire esta alma!

Embora façam parte de linguagens diferentes, os aspectos dramáticos de um e de outro criticam determinada postura social, potencializam ao máximo o imaginário, a ponto de espantar o público de determinada época, ou épocas distintas. Vender a alma ao diabo, é a solução desesperada de alguém insatisfeito com a limitada felicidade humana, e ao mesmo tempo uma maneira de viver sempre as mesmas frustrações, haja vista há um alto preço envolvido na troca: a servidão nas regiões infernais. 

 Poder se esquivar do destino, e controlá-lo, é se colocar no lugar de Criador e regente da própria vida, mas também de pagar o preço por interferir nos rumos históricos de muitas pessoas, neste caso opta-se pelo controle remoto, um dos símbolos do ócio criado na sociedade de consumo, e que oferece uma maneira rápida e eficaz de se obter novas sensações com apenas um aperto de botão. Em ambos predominam personagens inconsequentes, arquétipos dramáticos e sátiros de determinadas sociedades: uma moderna, em ritmo frenético de trabalho e evolução tecno-científica,e outra pós-moderna, sedenta por bens de capital. 

É verdade que críticas sempre existiram sobre tais contextos, mas a forma de operacionalizar tais críticas, assume um aspecto absurdo, único, excepcional nesta análise patafísica das obras. "Trocando em miúdos", é uma maneira radical de tratar de elementos negligenciados pela meta physis, pois esta em uma perspectiva social, se preocuparia com a realidade do indivíduo somente a partir do todo que o engloba, fora disso, o indivíduo, o particular, não é interessante. Seria, pois, blasfêmia nesse tipo de consideração creditar os rumos da história a fatores que transcendem o ser enquanto ser e aceitam, em vez disso, sua imprevisibilidade. 

Se faz ou, não sentido o diálogo entre O Fausto e Click, isso dependeria de um consenso geral, pois se assim não fosse, tal comparação seria completamente nonsense. Porém, para além do consenso, existe a experiência individual da leitura e as várias nuances criativas que esta suscita, um sentido paralelo e marginalizado, único, singularíssimo de percepção. São dessas pequenas antilhas que se preocupa a patafísica e em torno das quais ainda se gerarão muitas discussões.







segunda-feira, 22 de julho de 2013

THE SHOW HAS JUST BEGUN: matizes de um mundo artificial


            A física quântica – o que chamamos de física moderna - elaborou a partir da primeira metade do século XX uma série de postulados que provavam existir matérias bem menores que o átomo – até, então partícula indivisível – como os glúons e quarks. Einstein se chateava com tal teoria, uma vez que mal se conseguira responder por que os átomos não se tocavam. Resultado: teoria da relatividade.

Mas o problema aqui não é discutir sobre física, números e todas essas coisas das quais eu, humildemente não sou suspeito em falar. A questão é que do mundo do cálculo, através da limitação dos números, da crise da física que em quase um século se constituíra como o cerne das discussões científicas, fora preciso apelar para as relações entre sujeito e objeto para obter aquilo que a linguagem numérica e positivista não dava conta, pois desconsiderar a ausência de consciência no universo – delegando somente ao observador o poder de ser consciente – era um erro fatal. 
Observemos, por exemplo, o gato de Schrodinger, que está preso em uma gaiola e tem cinquenta por cento de chance de ser atingido por um material radioativo que liberado, acionará um gás que o matará dentro de exata uma hora. A questão é que o gato também tem cinquenta por cento de chance de estar vivo, não é? Por isso, antes que o observador abra a caixa e daí tire suas conclusões hipotéticas, o gato não está morto, nem vivo: está morto-vivo.
O que isso tem a ver com o título do texto? Bom, ainda não explicarei. E para complicar mais, considere o filme produzido nos anos 90, The Truman Show, estrelado por Jim Carrey – ironicamente o rei da comédia nesta época – e no qual representa o papel de Truman, um sujeito que desde seu nascimento fora selecionado para um programa de TV, que o filmaria até o fim de sua vida. O problema não estava apenas nas câmeras, é que o mundo de Truman não é real: todos são atores e tudo é um cenário. 
Truman sai de seu estado de profunda ignorância e percebe as falhas daquele mundo artificial, somente quando uma das atrizes – ao se apaixonar por ele - o alerta para o que realmente acontecia. 
O filme foi produzido em 98, e se me lembro bem, chegou no Brasil, uns quatro anos depois. Lembro que este filme não fez tanto sucesso quanto os cômicos O máscara, O mentiroso e Ace Ventura, pelo contrário, até desagradou uma fatia considerável de fãs do Jim Carrey enquanto comediante.
O fato é que, o filme é recheado de assuntos filosóficos. Explico: há múltiplos mundos, assim como na experiência física supracitada. Há o mundo ideal das pessoas que assistem ao programa de TV e vêm na felicidade artificial de Truman uma quebra, um escape de uma vida medíocre e limitada – o que seria o mundo real delas. Há o mundo de Truman, que é artificial, de fato para quem assiste – os observadores -, mas real para o próprio Truman, enquanto sujeito histórico. Há o mundo dos atores, que sabem exatamente a diferença do que é real e do que é artificial, e optam por flertar com as duas dimensões. E por fim, o mundo do grande observador Christopher – jogo de palavra com o nome Christ – o idealizador do programa e também diretor. Um ser completamente dependente e viciado em sua própria criação. 
Somos, na verdade a mistura de todas estes personagens, de todos esses mundos. Quem nunca achou que fosse o protagonista, ou o principal e mais cruel antagonista de sua própria vida? Quem nunca pensou ser o seu ponto de vista e suas ações os determinantes para o destino do mundo? 
A vida no século XXI, em meio à propagação da internet prova como cada vez mais as pessoas desejam experimentar de novas formas, de novos conteúdos e não apenas como observadores, mas como objetos clínicos. O padrão mais perfeito de corpo, ou o mais bizarro, uma cor de cabelo, de olhos diferentes todo mês, uma roupa “fora” de moda, e aqui vale as aspas porque a moda deixou de ser tão massiva como nos anos 60 e 70, agora cada um inventa o que quer vestir, é diretor de sua própria vida. Esse é um ponto positivo e que deve ser louvado. Mas, será que, em um dado momento não nos viciamos em ter total controle sobre os rumos históricos que se seguem? E se houvesse a possibilidade de delegar a outrem – e não falo de um Ser superior – a decisão sobre nossas vidas? Será que faria algum sentido hoje esse tipo de argumento? Creio que não.
Voltando para o filme, o seu desfecho é o exemplo fiel de um “clímax”. Truman decide de uma vez por todas ir até o fim, descobrir o que tem além do cenário, se libertar daquela vida artificial. É aí, que o aspecto do ator se transforma: as primeiras lágrimas, o sofrimento. Não há mais a felicidade acima de tudo pregada no programa. Há também a dramatização daquela tragédia da vida real, elemento apenas adicionado ao enredo por causa da angústia de Truman, e fator do qual seria impossível aplicar dentro dos objetivos do programa: vender um produto perfeito, que levasse felicidade a vidas tristonhas e desacreditadas.
Christopher tenta impedir que Truman atravesse o mar até chegar ao fim do “set” de gravação, enviando tempestades e chuvas torrenciais – efeitos audiovisuais – para dificultar sua empreitada. Mas, a vontade de ser livre é maior e Truman consegue chegar ao seu destino. Essa, sem dúvida é a parte mais excitante do filme. O fim do cenário é um céu bem azul, de nuvens branquíssimas. Porém, artificial, de madeira, com uma longa escada, e uma porta indicando a saída. 
Uma parte do diálogo que se segue, neste momento entre Christopher, como a figura de Deus se pensarmos bem, e Truman é o seguinte:
- Truman. Você pode falar. Eu posso te ouvir.

- Quem é você?

- Sou o criador de um programa de TV, que leva esperança, alegria e inspiração para milhões de pessoas.

- E quem sou eu?  

- Você é a Estrela.

- Nada foi real?

- Você é real. Isso foi feito apenas para que fosse observado... ouça-me Truman: não há mais verdades lá fora do que aquelas que eu criei para você. Verá mentiras,  e ilusões... porém, em meu mundo, você não tem o que temer. Conheço-te melhor do que você mesmo

- Você nunca pôs uma câmera no meu cérebro. 

- Você está com medo. É por isso que não pode sair. Está tudo bem, Truman, eu compreendo. Estive assistindo você, sua vida toda. Estava assistindo quando você nasceu, e quando você deu seu primeiro passo. Seu primeiro encontro, e quando perdeu seu primeiro dente. Você não pode sair, Truman. Sua vida é aqui... comigo.

[ ... ]

O teórico social Jean-Baudrillard – posteriormente Frederic Jameson e Jean-François Lyotard - ao cunhar o que chama de “simulacrum”, ou simulacro, aborda de forma genial como nas veias da post- modern society, a opção pela hiper-realidade se torna uma constante. Ou seja, não a negação do mundo real, mas a possibilidade de conectividade entre o real e aquilo que é simulado. Sim, é o que parece: a hiper-realidade, é a linha tênue entre o que é real e o que é irreal. Não há mais relação simbiótica entre o sonho e a realidade. Obter o sonho não é mais um fim, ou um meio, é o meio e o fim, ao mesmo tempo. É um estado sútil no qual o consciente se habitua a digerir apenas as migalhas do desejo, achando ser o suprasumo da realização. Seria mais, ou menos como a metonímia e sua velocidade informativa, em que uma palavra, de forma semiótica, se constitui como a substituta de um sentido mais completo e específico.

Exemplos: Comer Nestlé (bombons, leite etc); Ouvir o disco todo (ouvir as faixas). Percebam que há estrita relação entre o termos genéricos e seu conteúdo particular. Isso acontece da mesma forma na hiper-realidade. Veja o mundo virtual da web, em que uma simples foto no perfil do facebook que mostra uma pessoa sorrindo, faz-nos pensar dificilmente na hípotese dela estar passando por um momento ruim. Faz-se necessário ter muitas informações para que possamos rasgar a barreira da abstração imediata que a imagem nos faz optar. Por isso, há o surgimento de identificações - identidades fragmentárias.

 As identidades, portanto que construímos (o Eu-trabalhador, o eu-filho, o eu-estudante, o eu-virtual etc.) são resultados de uma “confusão organizada” entre os conceitos de público e privado, que emergiram no final do século XVIII, com o advento da modernidade - a burocratização máxima do Estado obrigou o homem a se subdividir. Mas, também, do ponto de vista de um avanço agressivo nas relações de consumo possíveis com a reformulação do capitalismo, e da resignificação do consumo, por conseguinte da mercadoria. Não há mais distância entre sujeito (quem consome) e objeto (o que é consumido). Não somos mais como aqueles físicos, cientistas: observadores prepotentes e pretensiosamente objetivos que achavam ser o objeto algo ingênuo e totalmente manipulável. Hoje, os bens de consumo são praticamente nossos prolongamentos nervosos. A diferença entre o real e o virtual, ou não real é cada vez menos gritante.

Desta forma, as duas personagens que traduzem bem esta incapacidade de distinguir o que real e o que é irreal, no meu ponto de vista são Christopher e Truman. Enquanto, em um dado momento, um se acha dono do mundo, principal financiador e diretor do programa, e mal percebe o vínculo viciante que estabeleceu com a vida artificial de Truman, assim como os outros telespectadores, mas de forma mais apaixonada, pois está na condição de criador, por outro lado, há o próprio Truman, que deve escolher entre voltar para a ignorância, ou se permitir viver uma vida de limitações, sofrimento, e de felicidade, embora real, limitada. Me parece que os artistas, são as únicas criaturas mais conscientes neste jogo, pois sabem diferenciar o que é, e o que não é real e flertar com as duas possibilidades de mundo.

É neste ponto, à beira do desfecho, que a trilha sonora ganha um aspecto melancólico, arrepiante, transcendental. É neste ponto, que a atenção se redobra, a sensibilidade se aguça, as lágrimas teimam. É neste ponto, que as circunstâncias se tornam irônicas: da mesma forma que as pessoas que assistem Truman compram uma alegria mercadológica, e agora consomem de sua tristeza, nós, em cima de nossa zona de conforto - o mundo real - também nos emocionamos quando vemos os socos desferidos contra o Céu de mentira; a única oportunidade de um homem em poder ir além de apenas tocar o firmamento, e ainda que seja falso, golpeá-lo com toda a raiva sincera que habita o peito, manchando de suor aquele muro de Berlim celestial. 

Truman fez sua escolha: Saiu de uma vida, para começar outra.  E como neste poema de Fernando Pessoa chamado A queda, seu mundo mudaria para sempre:

 Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si-próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além-Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...
 

Há muito a ser dito, em fim. No mais, aconselho a todos que leram este texto assistir o filme, pois há informações que somente a experiência pessoal pode extrair. Este texto está longe de representar a completude que há entre a imagem, abstração e compreensão. Mas já que, chegamos ao clímax e precisarei desligar as luzes da ribalta, prefiro fazer isso com a cena final do filme:



                                                              THE     END